top of page
Foto do escritorCV News Curitiba

Crítica: “O Conde” crava os dentes na ferida



Todo ditador é uma figura nefasta. O caso de Augusto Pinochet não é diferente: foi um general inescrupuloso, traiu o presidente a quem era subordinado, saqueou os cofres públicos, ordenou a tortura e o assassinato de presos políticos e sugou a esperança do povo chileno. No filme de Pablo Larraín, porém, ele suga também o sangue e se alimenta de corações.

O longa, que estreou na Netflix em 7 de setembro, gira em torno da insatisfação que Pinochet sente com a vida, após 250 anos de existência, o que faz com que o ex-déspota, há muito destituído de seu cargo, decida morrer. Entretanto, os planos de seus asseclas e a chegada de uma contadora francesa mudam as perspectivas suicidas do protagonista.

A começar pela ambientação. O deserto gelado e nublado no qual se passa a trama é perfeito para a morada de um vampiro, pois tudo é muito sombrio e solitário, com a estética toda tendo grande inspiração no cinema Noir, fato que só se intensifica com a cinematografia agonizante de Edward Lachman.

Apesar do clima de terror, o filme é o que se pode chamar de comédia; brutal e amargo, mas cheio de um humor cínico, o que ajuda o público a engolir as atrocidades relativizadas pelos personagens.



Outra qualidade da obra é o roteiro de Pablo Larraín e Guillermo Calderón, que venceu essa categoria no Festival de Veneza deste ano, e não é à toa, pois os autores construíram diálogos virulentos – dignos das ações da família Pinochet – mas que fluem como se os intérpretes destes vilões da vida real estivessem recitando poesias. Aliás, que intérpretes! A produção escalou os melhores atores possíveis para cada personagem, com destaque para o rei em pessoa, Jaime Vadell, que impressiona como um ditador anestesiado, mas ainda asqueroso. Atrás dele só Gloria Münchmeyer, a esposa, e Alfredo Castro, o mordomo/capacho. Os 5 filhos do general recebem interpretações à altura de suas personalidades: abutres.

Deve-se também comentar a atuação de duas atrizes. Primeiramente, a participação essencial de Paula Luchsinger na história como Carmen, a freira e contadora francesa que faz o Comandante repensar a morte. A atriz, de 28 anos, faz uma interpretação contida, porém marcante, e é sua boca que expõe de modo mais escrachado – mas sempre sorrindo – as maiores imoralidades da ditadura chilena. A outra foi uma surpresa: Stella Gonet, que só aparece no terceiro ato, mas é inesquecível e imprescindível para reviravolta do final.

Agora, se existe alguém que merece destaque, é Pablo Larraín, o promissor diretor por trás de cinebiografias como “Jackie” e “Spencer”, ambas indicadas ao Oscar. É uma das marcas do cineasta despir de suas máscaras figuras conhecidas e expor controvérsias a seu respeito. No caso de “O Conde”, uma sátira, as máscaras são dilaceradas e as controvérsias escancaradas, visto que Larraín foi criança durante os horrores de Pinochet, cujas consequências ecoam no país até a atualidade, sendo sempre necessário lembrar o ocorrido, para que nunca mais se repita.



Apesar de esse ter sido meu primeiro filme do cineasta, é conhecida sua intimidade com a câmera, e isso é visível aqui. Ele trabalha as sombras e os silêncios como quem sabe que não se deve fazer desfeita à problemática. A escolha de tornar o longa preto e branco só melhora a experiência do público, que termina a exibição sem palavras. Isso também é reforçado pela música de tirar o fôlego.



Embora haja a fantasia e o tom nonsense das piadas, a farsa construída por Larraín toca na mais profunda ferida das ditaduras latino-americanas após suas derrocadas: a impunidade. É este o flagelo que assola a população e as vítimas sem rosto e, além dele, a noção proposta pelo filme de que o mal não é apenas passado de geração em geração, através de ideias que carregam em si sementes de morte – aquelas contra a democracia, por exemplo -, como também se regenera, transforma, muda de mãos e, como um vampiro, arranja modos de viver eternamente.


Rodrigo Moreira Wozniack

8 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page